Dia Mundial da Paz | "Bem-Aventurados os Pacificadores" por Mónica Dias

"Bem-aventurados os pacificadores, porque serão

chamados filhos de Deus." (Mateus 5:9)
 

Como não acontecia há muito tempo, entendemos este ano por que razão a Igreja Católica dedica o primeiro dia do ano à Paz no Mundo. Perante o fogo e a violência de uma guerra tenebrosa que recomeçou aqui na Europa, perante o sofrimento e o terror de milhares de pessoas tão próximas de nós, perante a agressão feroz com rasto de destruição e desespero, entendemos que a paz é o primeiro de todos os bens porque tudo acolhe, tudo garante e tudo condiciona. Sem paz, percorremos a escuridão do medo e da insegurança, onde não há nem justiça nem liberdade, e não vivemos, apenas procuramos sobreviver. Através das imagens que nos chegam dia após dia da guerra, seja hoje na Ucrânia ou ainda ontem no Iémen, compreendemos que a paz é um lugar precioso, onde começam os nossos Direitos e para onde se projeta por isso mesmo o nosso Dever. Neste sentido, o Dia Mundial da Paz é essencialmente um apelo e não uma celebração. Uma oração coletiva. Uma prece por todos as Mulheres e todos os Homens. No primeiro dia do ano pedimos com humildade que Deus oiça a nossa súplica pelo mundo e, ao mesmo tempo, comprometemo-nos com a paz enquanto dever, que também está ao nosso alcance, ou melhor, nas nossas mãos, pois fomos convidados a ser pacificadores e a assumir a responsabilidade da construção da paz.

A origem do Dia da Paz Mundial espelha esta responsabilização pela paz na terra. Teremos de recuar talvez à visita do Papa Paulo VI às Nações Unidas em 1965 para encontrarmos a razão de ser deste dia. Perante um mundo turbulento, marcado pela Guerra do Vietname como expressão mais atroz da guerra fria, a igreja assumia a sua inquietação não só perante o sofrimento de tantas vidas humanas, mas também perante a possibilidade de um escalar da violência a um nível mundial. Marcado pela visita à ONU, a assembleia geral da voz dos povos e o conselho de segurança do poder dos cinco, o Papa publica no ano seguinte a Encícilica Christi Matri Rosarii (1966) e faz culminar a oração a Maria e pela paz mundial a partir do dia 1 de Janeiro de 1968. Estabelece-se assim o primeiro dia do ano do calendário civil como momento em que olhamos para a paz simultaneamente como um pedido, mas também como um apelo e um dever que se compromete simbolicamente com uma “agenda para paz”. De certa forma, a Encíclica do Papa João XXIII Pacis in Terris de 1963 já refletia o mesmo apelo à paz, que a crise dos mísseis tinha tornado ainda mais urgente, e que era por isso importante ampliar, consciencializando para a fragilidade da paz e a necessidade de um empenho maior dos cristãos na sua difícil preservação e contínua reconstrução, como recordava também o Papa João Paulo II na sua mensagem de 2003.     

Desde 1968 as mensagens do Dia Mundial da Paz têm dado uma orientação importante para percorrermos o ano na esperança da paz como possibilidade real, mesmo em tempos sombrios. E ao longo de mais do que meio século, a perceção da paz tornou-se de facto mais presente, mais ampla, abrangendo temas como a educação, a justiça social e o combate à pobreza, os Direitos Humanos, o diálogo inter-religioso e cultural, o papel da mulher, o apoio aos refugiados, o perdão e a reconciliação, a ajuda humanitária ou a proteção do ambiente. É, no entanto, interessante observar que por mais universal e intemporal que as mensagens da paz tenham sido, souberam sempre integrar uma reflexão sobre o respetivo momento presente e alertar para situações particulares e concretas, chamando a comunidade dos católicos para a oração, mas também para a renovação da sua esperança na paz e consequentemente para o seu contributo (direto ou indireto, grande ou pequeno) na resolução dos conflitos e na instituição da paz.         

Em 2013 o Papa Bento XVI recordava-nos precisamente este nosso papel de pacificadores e mais recentemente, precisamente há um ano, em janeiro de 2022, o Papa Francisco chamava a nossa atenção para as ferramentas necessárias à construção da paz, como se fossemos artesãos num incessante diálogo intergeracional envolvendo todos os povos da terra. Como se o primeiro dia do ano fosse o início de um trabalho de artesão e a paz começasse pelas nossas mãos.

Provavelmente foi o filósofo Immanuel Kant quem mais rigorosamente projetou esta perceção dos bem-aventurados enquanto pacificadores para um contexto secular, fazendo da paz não só um dever moral, mas sobretudo político. Em A Caminho da Paz Perpétua (1795) aponta-se por isso para a criação de leis e de instituições que fossem capazes de resolver os conflitos de modo “civilizado” e de fomentar uma garantia para a paz. Assim, é curioso notar que também as mensagens do Dia Mundial da Paz têm um traço “kantiano”, uma vez que assumem, apesar da sua formulação religiosa, um forte caráter político e que se traduz nomeadamente num apelo aberto não só aos povos da terra enquanto irmandade, mas igualmente aos políticos, aos decisores, e aos governadores do mundo enquanto agentes de poder e potenciais fazedores da paz, ou seja, pacificadores por excelência.      

Neste horizonte das mensagens do Dia Mundial da Paz, a do dia 1 de janeiro de 2023 reveste-se de particular relevância. Primeiro, porque é pronunciada em tempo de guerra e de enorme instabilidade geopolítica que põem em causa a nossa a já frágil casa comum, seja a política (a da ONU, fundada na ideia da soberania e na lei internacional, mas também a europeia, baseada nos princípios do estado de direito e da Liberdade), seja a planetária (tendo em conta a ameaça nuclear, mas igualmente e a relativização da agenda ambientalistas). Em segundo lugar porque a paz a que devemos aspirar hoje, já não pode ser um mero armistício, nem sequer um bem-intencionado Tratado entre poderosos, mas tem de afirmar-se como chão firme para a reconstrução de uma paz sustentável e de uma reconciliação verdadeira. Já não nos serve um novo acordo de Minsk que apenas congele a guerra enquanto os combates e o ódio continuam. Em contrapartida é preciso iniciar um diálogo (difícil, moroso, mas honesto) e imaginar uma paz alinhada com aquilo que as Nações Unidas descrevem no seu 16º objetivo de desenvolvimento sustentável como uma paz fundada na justiça e em instituições fortes, inclusivas e livres.

Sem dúvida, estamos perante um desafio complexo e difícil, mas ainda assim possível. O Papa João Paulo II chamava a isto “arriscar a paz”, um compromisso que deveríamos aceitar em nome de todos aqueles que já o tinham empreendido no passado. Hoje, o nosso caminho e o nosso tempo voltaram a cruzar-se com este desafio, chamando-nos inevitavelmente para responder.

É bom recordar este compromisso com luz e esperança no primeiro dia do ano. Recordando que este dia é apenas um começo. Mas também uma promessa para os filhos de Deus. A quem chamamos os bem-aventurados.
 

Mónica Dias

Categorias: Instituto de Estudos Políticos

Sex, 30/12/2022